Antagonista Casual
“Vou fazer um projeto de maquiagem inspirado nos álbuns do The Cure.”
Quando as palavras saíram da minha boca até fiquei surpresa com a ideia. “Assim posso usar minhas maquiagens e não vê-las apodrecendo, paradas na penteadeira” justifiquei correndo, meio sem jeito, e já com vergonha de ter mais um projeto que eu nunca finalizaria na pilha junto com tantos outros.
“Eu acho que é uma ótima ideia!” e quando subi meus olhos ele estava sorrindo pra mim. Eu amo o jeito como as maçãs do rosto dele ficam quando ele sorri, e na hora já me senti um pouquinho melhor. Ele também nunca me acha uma completa idiota e sua animação conforme conto o que eu planejo fazer acaba me contaminando aos poucos. Alguns segundo depois já estamos debruçados em cima do celular, olhando as artes dos álbuns que contam a história de quase quatro décadas da minha banda favorita. Vejo uma profusão de cores e formas e penso, mordendo os lábios: “Vai dar certo sim”.
***
Já passou pouco mais de um ano desde aquela noite quente, quando as palavras escaparam da minha boca e revelaram o pensamento que estava me consumindo há alguns dias. Minha penteadeira, que até então não era mais palpável que um sonho, nessa casa nova tornou-se realidade. O que eu não poderia imaginar é que ela, com suas pernas roliças de madeira, as gavetinhas pretas que mal acomodavam dentro de si um terço da minha coleção e seu enorme espelho redondo, olharia para mim quase que com ironia, dizendo “Não era você que sonhava com uma penteadeira desde criança? Pois aqui estou, empoeirada e esquecida, enquanto você está aí jogada na cama”. Eu quase podia ouvir o creck creck da madeira enquanto ela ria de mim (Ou seriam as peregrinações da Princesa Berenice no escuro?), mas achei desrespeitoso ela rir assim, de qualquer forma. Afinal de contas, apenas alguns meses antes, eu tinha montado aquela penteadeira sozinha, um dos meus primeiros feitos como nova dona-de-casa e achei que pelo menos isso seria o suficiente para que eu não fosse motivo de risada.
“Quando eu tiver forças pra me mexer você vai ver o que eu vou fazer” eu disse a ela um daqueles dias. A penteadeira me fitou, inabalável, como se eu estivesse falando com outra pessoa. Imagino que naquele ponto ela já tivesse se cansado de mim, da minha inércia, das minhas promessas, assim como todos os outros antes dela, mas eu não me importei. Virei de costas pra ela e dormi, ignorando o sol que teimava em entrar pelas frestas da janela.
Um dia a inspiração veio e, com ela, tive forças para sair da cama. Imagino que tenha sido mais pela pressão de ter tido uma testemunha quando aquelas primeiras palavras saíram da minha boca do que por qualquer outra coisa, mas enfim; sentamos, eu e minha penteadeira, e ficamos nos olhando.
“Eu não sei o que fazer agora”, murmurei, enquanto olhava para uma foto de uma geladeira, um aspirador de pó e uma luminária de chão. Ela riu, pretensiosa. “É claro que você não sabe”, ela falou, fazendo questão de ranger.
“Então é assim?” eu disse. “Tudo bem”, continuei amargamente, “Eu posso simplesmente não usar maquiagem nunca mais, então também não vou precisar mais de uma penteadeira. Posso pegar o martelo que usei para te montar e te deixar em mil pedacinhos, claro que posso!”. Ela se calou na hora, enquanto eu sorria, triunfante. Eu estava blefando, é claro, mas ela não precisava saber disso. Me curvei para as gavetinhas pretas manchadas de base, resquícios da última vez que foram abertas; determinada a ignorá-las (tanto as manchas quanto a penteadeira), comecei a passar os dedos pelas caixinhas de papel que utilizava como divisórias, decidida a fazer algo.
Passei um pouco de sombra rosa nos olhos. Um delineador me ajudou a criar um traço imaginário que ia do início até o fim da minha sobrancelha, mas não no local onde você imagina que esse traço deveria estar. Um pouco de tinta amarela trouxe a cor da luminária para a minha criação. Cílios postiços foram delicadamente colocados, mas apenas na parte inferior dos olhos. Finalizei com uma unha postiça branca na minha pálpebra. “Agora está perfeito.”
A penteadeira ignorou meu entusiasmo completamente, fingindo indiferença enquanto ficava estática a minha frente. Sabia que ela não teria muito mais o que dizer agora que eu estava ali, fazendo coisas.
Por um ano sentei em frente aquele espelho redondo e parecia não haver limites para minha criatividade. Terminei o primeiro projeto que me propus (o que foi uma grande vitória, visto que finalizar coisas não é meu forte), comecei tantos outros e fiquei assim, feliz, por um bom tempo. Às vezes minha penteadeira ainda soltava um muxoxo de impaciência quando eu a manchava acidentalmente com batom ou delineador, mas eu me desculpava e a limpava o mais rápido possível para que ela não rangesse de noite como vingança.
Mas, como eu disse, isso já faz um tempo.
Não vou entrar nos pormenores, mas um dia aconteceu. Foi algo tão simples quanto um estalar de dedos, mas forte o suficiente para que os batons agora deixassem um gosto amargo na boca. Comecei a passar tardes inteiras olhando caixinhas compactas com pequenos círculos coloridos que soltam um pouco de pó demais quando o pincel toca sua superfície, esperando que elas fizessem algo… quando eu mesma já não conseguia fazer mais nada.
Atualmente passo semanas sem sequer tocá-la, mas não é difícil perceber que ela já se adaptou muito bem a essa rotina. Ela aproveita as folgas para ficar tomando sol; gosto de ver o contraste da madeira clara de seringueira contra a pequena bolinha de pelos preta no meio, na parte de cima, bem em frente ao espelho. Posso até jurar que a penteadeira passa as tardes tirando meus batons de dentro de suas gavetas só para ver as patinhas ágeis da Princesa Berenice arremessando-os por baixo das cadeiras da sala ou escondendo-os sob a cama, mas as duas me prometem que jamais fizeram isso. E, enquanto jogo o indefeso batom de volta a gaveta, ouço dois risinhos abafados, e tenho que me virar antes que elas me peguem rindo também.
Não tenho a pretensão de dizer que eu e a penteadeira somos amigas hoje em dia, mas nosso relacionamento melhorou bastante. Não deixo mais ela pegar tanto pó, limpo seus espelhos com um pano macio levemente embebido em vinagre e suas gavetinhas pretas permanecem impecavelmente organizadas (apesar daquelas manchas fantasmagóricas de base terem se recusado a sair, por mais forte que eu as tenha esfregado). E, ultimamente, tenho até mesmo deixado os pincéis sempre lavados, soldadinhos à postos, prontos para um inesperado arroubo de criatividade. Mal posso esperar para ouvi-la bufando quando me ver puxando a cadeira para sentar à sua frente.
Ela vai ver, ah vai.
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Raine
24 de julho de 2020 at 6:18 PMNão tem nada que você não faça bem e eu morro de orgulho.
Marcela Suhr Dake
25 de julho de 2020 at 6:24 PMEu te amo tanto. ♥
Helena
25 de julho de 2020 at 12:39 AMAdoro vê-la se jogar no fantástico, em todas as mídias, saiba ♡
Marcela Suhr Dake
25 de julho de 2020 at 6:25 PMVocê não imagina como esse comentário iluminou meu dia! Muito obrigada mesmo, minha querida! ♥